quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

Das Passagens da Vida

As grandes conquistas, os grandes eventos são geralmente muito valorizados pela nossa memória. Àqueles é reservado o espaço dos momentos mais felizes de nossas vidas. Sempre que recordamos formaturas, casamentos, viagens... é como se a caixa do inesquecível se abrisse, esta responsável pelo maior afluxo de alegria e contentamento instantâneo; a caixa cinco estrelas da memória. Em um canto mais miserável desta, guardamos os momentos cotidianos. Organizados caoticamente, por serem muito semelhantes, são normalmente desprezados. Ausentes de novidade, muitas vezes são apenas parte das obrigações, da rotina. Já temos uma inclinação a ligar fato rotineiro com problema: trânsito faz par com engarrafamento, aula com tédio, trabalho com colegas chatos... Penso que isso deve ser inteiramente revisto desde que atentei para o fato de que vivo um período muito feliz cotidianamente em um momento nada glorioso de minha vida.

Se tivesse que escolher a vedete da minha rotina, esta seria o ônibus. Inicialmente, apraza-me muito a sensação de ser deslocada sem aplicar esforço próprio. Ser levado por uma velocidade que nunca se atingiria por capacidade física humana é fascinante. Imagina, sentar e contemplar um belo dia com árvores, prédios, carros, pessoas passando aos olhos. É como ler um livro, ou assistir a um filme: apegar-se a imagens vivas, interar-se de fatos pessoais sem, no entanto, fazer parte deles. Esquece-se, neste momento, das preocupações, dos problemas; livre das línguas conhecidas, tendo como companhia apenas estranhos ao longe. A indiferença dos passageiros nos liberta inteiramente para refletir sobre diversos aspectos da vida, sem medo de sofrermos interrupções. Somos apenas mais um na multidão, ou seja, podemos descansar em paz em meio ao anonimato, sem cobranças, sem olhares de reprovação, inveja, desgosto que os conhecidos nos lançam.

Sobretudo é um momento em que não estar produzindo, correndo atrás do sucesso, solucionando problemas é livre de reprovação. Afinal, é o período necessário para chegarmos até os locais onde cumprimos nossas obrigações, seja no trabalho, faculdade ou mesmo em casa – onde, ora pagamos contas, ora damos satisfações, relatando os altos e baixos do dia. Entretanto, ninguém relata o momento que passou no ônibus, é um tempo morto, despercebido, esquecível. É aí que reside a mágica. Um tempo inevitável só para si. Renunciar à vida por instantes, ser espectador do que passa aos olhos, fatos desimportantes, rostos que serão esquecidos, ser levado por um desconhecido. Transe.

Acho que por proporcionar essa sensação de contentamento indiferente é que andar de ônibus combina com ler um romance. Pegar sol em um dia lindo de primavera lendo “O Retrato” é uma lembrança feliz que compartilho só comigo. E, indiscutivelmente, não há momento melhor para curtir um som. Para os que adoram viver no mundo da lua, como eu, também não há melhor lugar pra soltar a imaginação, criar histórias e teorias. Parece desimportante, mas o pequeno fato de ser um passageiro diário pode ser um refúgio onde encontramos com nosso próprio ser. Momento terapêutico; carregados de inércia, pensamos na vida, sem ela pensar em nós.
Vitrola: Alegria Alegria

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